Por Bruno Marzullo Zaroni e Caio César Bueno Schinemann
Sentença arbitral parcial é a decisão arbitral que não resolve a integralidade da controvérsia submetida ao árbitro. Usualmente é técnica procedimental utilizada em lógica similar àquela que orienta a liquidação de sentença no processo civil: decide-se, primeiro, acerca da existência ou não de um núcleo de direito; depois, o direito antes reconhecido será quantificado, gerando a condenação.
Há claro racional jurídico-econômico na opção pelas sentenças parciais na arbitragem. Quando se verifica, primeiro, a existência ou não de um núcleo de direito, evita-se a produção de provas relativas à quantificação de um direito que pode sequer existir. Economiza-se tempo e dinheiro, o que é especialmente relevante se considerada a complexidade dos casos usualmente submetidos à arbitragem e os custos decorrentes da instrução probatória.
Em que pese a inegável utilidade, a cisão do julgamento pelo árbitro pode gerar um problema prático. A ação anulatória da sentença arbitral parcial é submetida a prazo decadencial de 90 dias a partir do recebimento da notificação da respectiva sentença (artigo 33, §1º, da LArb). Significa que, se proposta, a ação anulatória que tem por objeto a sentença parcial tramitará em paralelo ao processo arbitral, tendo em vista a necessidade do prosseguimento do feito na arbitragem a partir da sentença arbitral parcial para que proferida outra sentença arbitral — a final, que resolverá a integralidade da controvérsia.
Há mais de uma década Carlos Alberto Carmona alertou para o risco de que o autor da ação anulatória de sentença arbitral parcial pleiteie “uma medida antecipatória de tutela que barre o andamento da arbitragem até o final julgamento da ação de impugnação da sentença arbitral parcial” [1]. O problema tem se verificado na prática, sobretudo a partir da maior aderência das partes e dos tribunais arbitrais às sentenças parciais após a reforma da Lei de Arbitragem de 2015, que positivou a possibilidade de fatiamento do julgamento.
Por razões jurídicas e econômicas, não é possível permitir que a ação anulatória de sentença parcial obstrua o prosseguimento do processo arbitral, muito menos em âmbito liminar. Primeiro, do ponto de vista jurídico, pedido dessa natureza constituiria descabida anti-suit injunction (ou medida antiarbitragem), por via transversa.
Anti-suit injunction é um remédio historicamente desenvolvido no common law que, em relação à arbitragem, diz respeito à dedução de pedidos perante uma Corte estatal pelos quais se pretende impedir o início ou continuidade de uma arbitragem. O remédio é útil especialmente na arbitragem internacional, quando uma parte busca instaurar um procedimento arbitral em país diverso do eleito. Por isso, as anti-suit injunction visam, em última análise, à proteção do que foi disposto na convenção arbitral [2]. Transpor sua utilização ao direito brasileiro sem maiores mediações e para vulnerar a arbitragem é de todo inadequado.
O regime jurídico brasileiro da arbitragem acolhe o kompetenz-kompetenz em suas vertentes positiva e negativa. Em perspectiva positiva, estabelece-se que é do árbitro a incumbência de deliberar acerca de sua própria competência, antes de qualquer outro órgão jurisdicional (artigo 8º, p. único, e artigo 20, da LArb). Em aspecto negativo, veda-se ao Judiciário a tomada de decisão a priori acerca do exercício da jurisdição arbitral caso a convenção arbitral seja arguida – salvo casos teratológicos – ou caso já haja reconhecimento do órgão arbitral acerca de sua própria jurisdição sobre a controvérsia (artigo 485, VII, do CPC). Como consequência direta do efeito negativo, tem-se que “existindo arbitragem em curso, o juiz estatal deve aguardar a definição do tribunal arbitral (…) cabendo-lhe apenas extinguir o processo judiciário” [3].
Se há sentença parcial, por evidente, já houve o reconhecimento do árbitro acerca de sua própria jurisdição (efeito positivo), inexistindo espaço para atuação do Poder Judiciário a obstar o prosseguimento do processo arbitral (efeito negativo).
Embora seja um instituto que, em sua concepção do common law, não encontra respaldo no direito brasileiro, a criatividade dos advogados e da jurisprudência permite colher exemplos de medidas antiarbitragem por via transversa — verdadeiras anti-suit injunctions disfarçadas em pedidos cautelares, ações anulatórias de contratos em que conste cláusula compromissória e conflitos de competência [4].
Os conflitos de competência são, possivelmente, o meio pelo qual a medida antiarbitragem por via transversa encontrou maior efetividade. O STJ não só admite a instauração de conflito de competência entre a jurisdição estatal e arbitral — o que, por si só, é bastante criticável à luz do kompetenz-kompetenz — como já utilizou desse mecanismo para controle prévio à jurisdição do árbitro. O exemplo mais emblemático é o caso Petrobrás, em que decidiu o STJ, de maneira prévia ao tribunal arbitral, que a União não estaria vinculada a cláusula compromissória estabelecida no Estatuto da Petrobrás (CC 151.130/SP).
De toda forma, o fato é que, como inclusive reconhecido pelo próprio STJ em diversas outras ocasiões, o kompetenz-kompetenz exige que o controle da jurisdição arbitral pelo Judiciário sempre se dê a posteriori, observada a restrição inerente ao rol de hipóteses de anulação da sentença arbitral. É inconcebível, portanto, que as ações anulatórias de sentença arbitral parcial pretendam obstar o prosseguimento da arbitragem em curso por meio de pedido ao Judiciário.
E se o pedido de anulação de sentença arbitral parcial for julgado procedente? Nesse caso, caberá ao árbitro verificar a repercussão da anulação sobre o processo arbitral em curso. Em determinados casos, por evidente, a anulação esvaziará o processo arbitral por completo — pense-se em sentença parcial que declara a existência de dano a ser quantificado posteriormente; se a sentença que declara a existência do dano for anulada, não haverá o que liquidar.
Porém, nem sempre a procedência do pedido anulatória implicará o completo esvaziamento da arbitragem. Se, por exemplo, a sentença parcial entende pela prescrição de um dos pedidos, e a arbitragem segue em curso no que concerne aos demais pedidos, a eventual anulação da primeira sentença em nada afetará os atos praticados na arbitragem no que concerne aos pedidos que não tinham sido abrangidos pela prescrição.
Caberá ao próprio árbitro realizar a análise do impacto da decisão de anulação da sentença parcial na arbitragem em curso. Por essa mesma racionalidade, não se cogita da absoluta impossibilidade de o processo arbitral ser suspenso enquanto pendente a ação anulatória de sentença parcial. Esta é, no entanto, uma incumbência do próprio árbitro. Caberia à parte interessada apresentar tal pedido, com as razões para tanto, ao árbitro, não ao juiz.
Para além de todo o racional jurídico, há razões econômicas que devem impedir a intervenção do Judiciário na arbitragem em curso a partir de uma pretensão anulatória de sentença parcial. Como usualmente a cisão de julgamento na arbitragem é utilizada a partir de uma lógica de liquidação de sentença, a fase posterior à sentença parcial é, no mais das vezes, a mais relevante do ponto de vista da instrução. A quantificação dos danos, via de regra, demanda ampla e complexa instrução probatória. Impedir o prosseguimento da arbitragem justamente nessa fase mais complexa, especialmente em âmbito de tutela de urgência, depõe diretamente contra a celeridade que deve pautar a arbitragem [5].
A conclusão é que não se pode permitir que as medidas antiarbitragem ganhem espaço no âmbito das ações anulatórias de sentenças arbitrais parciais. Os juízes, ao receberem pedidos desta natureza, devem se portar de forma especialmente autorestritiva, pois o seu campo de atuação, no que concerne a arbitragens em curso, é praticamente inexistente. As partes que optam pela arbitragem, da mesma forma, devem estar cientes que necessariamente, deverão aguardar a finalização do processo arbitral para que atuem contra a sentença arbitral final — e, por evidente, apenas quando caracterizada alguma das restritiva hipóteses de anulação previstas na Lei de Arbitragem.
[1] CARMONA, Carlos Alberto. Ensaio sobre a sentença arbitral parcial. Revista de Processo, vol. 165/2008, p. 9-28, nov/2008.
[2] TANG, Sophia. Jurisdiction and arbitration agreements in international commercial law. London: Routledge, 2014, p. 154-157 e LEW, Julian. Does national court involvement undermine the international arbitration process. American University International Law Review, 2008, v. 24, p. 518.
[3] TALAMINI, Eduardo. Competência-competência e as medidas antiarbitrais pretendidas pela Administração Pública. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 50, p. 127—153, jul-set/2016, n.p.
[4] AZEVEDO NETO, João Luiz Lessa de. A relação entre arbitragem e Poder Judiciário na definição da competência do árbitro. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Pernambuco, 2015, p. 186.
[5] Por isso, a constatação, no âmbito do direito comparado, de que anti-injunctions, embora aceitáveis antes ou ao início do procedimento, não devem ser admitidas após a decisão arbitral, sobretudo quando visam evitar sua efetivação. Ver, por exemplo: STRONG, I. S. Border Skirmishes: The intersection between litigation and international commercial arbitration, Journal of Dispute Resolution, 2012, p.1-20.
Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2021, 6h09